Uma História Desagradável
✍️ Fyodor Dostoevsky
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Um alto funcionário público, depois de uma reunião regada a champanhe na casa de um colega igualmente graduado, resolve, durante a volta para casa entrar de penetra na casa de um subalterno que comemorava o seu casamento naquela mesma noite. Bastou ler esta sinopse para eu ficar muito curioso e interessado em ler “Uma História Desagradável”. O livro é uma pequena novela, com cerca de 70 páginas, escrita em 1862. O início da década de 1860 na Rússia ficou marcado pelas reformas sociais iniciadas pelo Czar Alexandre II, reformas tais que culminariam com a emancipação dos servos em 1864.
Voltando à história, o conselheiro Stépan Nikíforovitch Nikíforov recebe em sua nova casa os conselheiros Semión Ivánovitch Chipulenko e Ivan Ilitch Pralínski. Dostoiévski nos fornece de forma brilhante uma descrição destas personagens.
Stépan Nikíforovitch começou sua carreira como um funcionário pequeno e sem recursos, arrastou-se nesta lenga-lenga por cerca de 45 anos, sabia bem onde chegaria … não gostava de expressar sua opinião pessoal sobre o que que fosse … não era nem um pouco bobo, mas não suportava exibir sua inteligência … Sua posição era bastante confortável, participava de reuniões e assinava documentos. Em uma palavra, era considerado uma pessoa magnifica.
Já Semión Ivanovítch tratava-se de uma pessoa que conquistara seu espaço depois de longo e árduo trabalho, tinha cabelos e suíças pretas e sua face tinha um tom de constante derramamento de bile … realizava seu trabalho com autoconfiança, sabia muito bem onde chegaria e, melhor ainda, onde não chegaria nunca … Via as novas reformas com irritação embora não estivesse especialmente preocupado.
O protagonista Ivan Ilitch tornou-se o que se chama de Vossa Excelência há apenas quatro meses … Era jovem também de idade, tinha não mais de 43 anos. Vinha de boa família … estudou em escola aristocrática e, embora não tivesse aprendido muita coisa, trabalhou e chegou a general … [Ele] sonhava alto … era um bom homem e até um poeta de alma.
A discussão entre os três é focada justamente nas reformas. Ivan Ilitch tem uma visão muito mais liberal do que a dos seus dois colegas (que ele considera até reacionários). Ivan preconizava uma maior humanização no tratamento dos subalternos. Claro que ali também havia um interesse pessoal em ser “amado” e “admirado”.
Ao final da reunião, Ivan nota que seu cocheiro estava atrasado e não estava a sua espera. Ele então resolve aproveitar a noite agradável e voltar à pé para casa. No meio do caminho, ele passa por uma residência onde havia uma grande festa acontecendo e descobre, através de um guarda na rua, que esta é a casa de Pseldonímov, seu subalterno, que, por coincidência estava celebrando o seu casamento naquela mesma noite. E aqui a melhor parte da história começa. Ivan resolve testar na prática a sua ideia de se aproximar e amar seus subalternos e considera que seria um grande presente para Pseldonímov a sua presença na festa de casamento.
A narração dos eventos ocorridos na festa é simplesmente genial. Dostoiévski consegue fazer com que a gente dê gargalhadas das inúmeras situações de “vergonha alheia” devido ao embaraço de ambas as partes em lidar com a situação. A hierarquia é muito engessada e não permite “deslizes”. Pseldonímov está claramente constrangido com a presença do chefe e o próprio Ivan também não consegue encontrar nos convidados abertura suficiente para uma conversa natural. Devido a hierarquia o que acontece é que Ivan é tratado como uma espécie de convidado de honra. Dão a ele o melhor lugar e servem a melhor bebida. A mistura de bebidas deixa Ivan completamente embriagado e sua participação na festa transforma-se num grande vexame. Dostoiévski nos faz trocar as gargalhadas por pena e piedade da situação em que se encontra Ivan. É incrível a crueldade de certos convidados com Ivan. O dia seguinte, na repartição, é ainda mais constrangedor.
É uma leitura curtinha e vale muito a pena. A edição brasileira de editora 34 ainda traz um ensaio ao final do livro que dá uma boa contextualização da obra tanto em termos da situação russa na época quanto em termos da carreira literária de Dostoiévski.