Antes do baile verde
✍️ Lygia Fagundes Telles
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Minha primeira incursão na obra de Lygia Fagundes Telles e faço minhas as palavras que Carlos Drummond de Andrade escreveu numa carta a Lygia:
O livro está perfeito como unidade na variedade, a mão é segura e sabe sugerir a história profunda sob a história aparente. Até mesmo um conto passado na China você consegue fazer funcionar, sem se perder no exotismo ou jornalismo. Sua grande força me parece estar no psicologimo oculto sob a massa de elementos realistas, assimiláveis por qualquer um.”
A coletânea tem uma enorme diversidade de temas, atmosferas e vozes narrativas. Há contos com finais surpreendentes, outros mergulhados em mistério, nostalgia ou inquietação. O que todos partilham são a escrita brilhante de Lygia. Seguem alguns comentários e trechos dos contos:
Os objetos - um conto que parece banal mas a medida que avança abre espaço a muita reflexão. Até reli para aproveitar melhor o texto.
- Veja, Lorena, veja…Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso…Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio.”
Verde Lagarto Amarelo - Conversa entre irmãos (um deles é o narrador). Recordações de infância, pequenos conflitos, a relação com os pais … muitas camadas.
Apenas um saxofone - mais um conto com traços de nostalgia. Uma mulher já na meia idade (e numa crise de identidade) recorda o grande amor da sua vida, um saxofonista.
Helga - um conto com recordações. Jovem brasileiro-alemão passa um tempo na Alemanha nazi e se apaixona. Surpreendente.
Ela era uma só. Não havia outra e se quisesse compará-la com alguma coisa, seria com os tenros cogumelos dos bosques ou com as manhãs de bicicleta nas estradas impecáveis ou com as primeiras cerejas da primavera. Era uma, una, única, apesar de ter uma só perna, aliás bela como ela toda.
O Moço do Saxofone - Personagens muito peculiares. Temos um saxofonista misterioso, sua mulher, anões… até mesmo alguém que palita os dentes sem pudor algum.
Antes do baile verde - duas amigas se preparam para ir ao baile de carnaval. Estado de negação e egoísmo são as duas palavras que me vieram a cabeça após ler este conto. Bem marcante.
A Caçada - como uma visita a uma loja de antiguidades leva alguém aparentemente normal ao delírio.
A Chave - um conto sobre a relação de um casal. Contada sob o ponto de vista do homem. A diferença de idades começa a se tornar um fator relevante.
Meia Noite em Ponto em Xangai - Um conto com final enigmático.
— Esse chinês não existe. Pode me ver nua, pode me ver de qualquer jeito, tanto faz, para mim ele não existe. Não sei explicar, mas não o considero realmente como gente. É como esta poltrona… Ou melhor, é como um bicho. Não me dispo diante do meu pequinês?
A Janela - Outro conto surpreendente.
Ele sentou-se, encolhendo as longas pernas para não tocar nas da mulher. Entrelaçou as mãos. Vestia-se corretamente, mas a roupa parecia larga demais para seu corpo.
- Eu precisava rever essa janela.
- Só a janela?
O homem fixou na mulher o olhar desesperado.
- Meu filho morreu aqui.”
Um chá bem forte e três xícaras - incrível a sutileza como o “assunto inconveniente” é tratado.
O Jardim Selvagem - um conto contado sob o ponto de vista de uma pré-adolescente e com um toque de mistério. Quem é essa Tia Daniela que se comporta de forma tão diferente das outras mulheres?
Natal na Barca - um diálogo inesperado. É possível ficar indiferente ouvindo tantos dramas e tragédias?
A Ceia - O último encontro de um casal que se separou após 15 anos. Uma escrita fantástica, desde a ambientação, passando pelos diálogos e tiques comportamentais.
- Como é possível, Eduardo?! Como é possível[…]Eduardo, ouça, estou de acordo, é claro, mas se ao menos você prometesse que vai me ver de vez em quando, ao menos de vez em quando compreende? Como um amigo, um simples amigo, eu não peço mais nada.”
Venha Ver o Pôr do Sol - Simplesmente brutal. O encontro de dois ex-namorados no cemitério.
- Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida.”
Eu Era Mudo e Só - os desafios da vida de casado vistos sob o ponto de vista do marido.
Escolher para mulher aquela que seria nosso amigo se fosse homem, esse negócio então é o pior de todos. Abominável. Estremeço só em pensar nesse gênero de mulher que adora fazer noitada com o marido. Querem beber e não sabem beber, logo ficam vulgares, desbocadas…”
As Pérolas - Tomás não está bem de saúde e teme que a sua mulher Lavínia se envolva com o amigo Roberto. Há algum sofrimento por antecipação.
O Menino - Mais um ótimo conto. Um filho que idolatra a sua mãe faz uma terrível descoberta.
Recomendo fortemente a leitura a todos que se interessem por histórias curtas mas com profundidade psicológica.