Incidente em Antares

✍️ Erico Verissimo

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Um livro absolutamente brilhante de Érico Veríssimo, que, com ironia, acidez e bom humor, constrói uma crítica mordaz à sociedade brasileira do início dos anos 70. A ironia já se revela no preâmbulo da obra:

“Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram são designados pelos seus nomes verdadeiros.”

A trama tem como cenário a cidade gaúcha fictícia de Antares, localizada na fronteira com a Argentina, próxima a São Borja.

Érico Veríssimo estrutura o romance em duas partes bem distintas. A primeira pode ser lida como um romance histórico, entremeando fatos reais da história do Brasil com o desenvolvimento ficcional de Antares. São abordados episódios como a Guerra do Paraguai, a Proclamação da República, a Revolução de 1930, o Estado Novo, o suicídio e o retorno de Getúlio, os governos de JK, Jânio Quadros e João Goulart. Os protagonistas desta fase são as sucessivas gerações das duas famílias mais influentes da cidade, os Vacarianos e os Campolargos. cuja rivalidade se inicia com um “ódio à primeira vista”:

“A primeira vez em que Chico Vacariano e Anacleto Campolargo se defrontaram nessa praça, os homens que por ali se encontravam tiveram a impressão de que os dois estancieiros iam bater-se num duelo mortal.”

Embora seja a parte mais expositiva, e ocupe quase metade do romance, ela consegue prende o leitor pela forma fluida da narração.

A segunda parte concentra-se no acontecimento propriamente dito e nos seus desdobramentos. No dia 13 de dezembro de 1963 um acontecimento insólito choca a cidade. Durante uma greve geral, até o cemitério paralisa as suas atividades. Os mortos por enterrar simplesmente levantam dos caixões, dirigem-se para o centro da cidade e começam a “falar umas verdades” à população e desmascarar a hipocrisia da elite local.

Aquilo sobre que ninguém fala ou escreve não existe. Se um espelho reflete um ato e um fato que consideramos escandaloso, quebramos o espelho e voltamos as costas para o ato e o fato, dando a questão como resolvida. Neste país quase todos os problemas políticos, econômicos e sociais são solucionados no papel.

Após o “desabafo coletivo”, o livro vai de família em família vendo o efeito devastador das declarações dos defuntos.

Os paralelos com a vida política brasileira são evidentes: as famílias tradicionais que sustentam o poder, ligadas simbolicamente ao regime militar de 1964; o delegado que personifica a repressão aos subversivos; o padre Pedro-Paulo, figura ligada à Teologia da Libertação. O povo, por sua vez, é retratado como apático e desmemoriado, alheio à realidade. A própria data de 13 de dezembro é uma alusão ao AI-5, que foi promulgado em 13 de dezembro de 1968.

Inocêncio Pigarço é, antes de tudo, um policial de carreira, um profissional. Como guardião da sociedade, deve achar que os fins justificam os meios. Todos os meios, portanto, são bons se o fim é defender o “poder constituído”.

— Mas depois de todas as barbaridades ditas hoje na praça, a vida de Antares não pode continuar a mesma.
— Qual, compadre, não se iluda! O tempo tem muita força. Deixe passar uns dias, umas semanas e tudo fica como dantes no quartel de Abrantes.


— Mas o povo ficou sabendo.
— Que é o povo? Um monstro com muitas cabeças, mas sem miolos. E esse “bicho” tem memória curta.


Acho que a hipocrisia do lado conservador foi muito bem ironizada ao longo da história. Entretanto, penso que alguns personagens do lado progressista foram retratados de forma excessivamente idealizada. De resto, um livro excelente. É longo mas vale a pena a leitura. Nota 4,5 arredondada para 5.